segunda-feira, 5 de setembro de 2011

A JANGADA DE PEDRA - JOSÉ SARAMAGO




(Por: Lincoln Raniere Porto Schwingel)


            José Saramago (Azinhaga, Portugal, 1922 – Ilhas Canárias, Espanha, 2010) é considerado o nome mais expressivo da literatura portuguesa contemporânea. Ganhou prêmios importantes como o Nobel de Literatura e o Prêmio Camões. No cinema temos algumas produções que foram adaptadas de suas obras: Ensaio sobre a cegueira,  A jangada de Pedra e Embargo.
            Sua primeira obra, Terra do Pecado, foi publicada foi em 1947. No entanto é a partir da década de 70 que Saramago passa a produzir suas principais obras. Nesse mesmo período surge uma geração de artistas que darão uma nova cara à ficção portuguesa, como Antonio Lobo Antunes, João de Melo, Olga Gonçalves e Lídia Jorge. Essa geração revolucionou a estética da literatura de seu país, e ainda cutucou a tradição, trouxe a denuncia dos abusos cometidos por Portugal em suas antigas colônias  da África, criou uma escrita própria do universo feminino; foi uma vertente que buscou, sobretudo, resgatar o passado e ligá-lo ao presente.
            Dentre esses escritores Saramago destaca-se pela particularidade da escrita: frases compridas, a fala dos personagens entrelaçadas com a do narrador, a economia do ponto final e suas constantes substituições por vírgula; são esses elementos que vão caracterizar a linguagem oral, resgatada da tradição oral popular, com uma eloquência tipicamente lusitana. Sua narrativa infringe os valores e formas tradicionais, transforma a história portuguesa em ficção num tom de ironia e denúncia. O contexto histórico de Portugal está ligado à grande parte da obra de Saramago, mas não apenas como pano de fundo do romance, a história é o tema principal da trama.

Obra

            A jangada de pedra conta a história fictícia da Península Ibérica  que se separa do continente europeu e ruma para uma viagem fantástica pelo Oceano Atlântico. A separação da península é, na verdade, uma crítica política e ideológico às relações entre Portugal e Espanha com os outros países europeus. O fato inusitado é uma alegoria da suposta falta de identificação dos povos ibéricos com o restante da Europa, por isso a jangada (península) segue em direção ao sul, mais próximos das antigas colônias da América, onde a identidade cultural desses países apresenta maior afinidade com a de portugueses e espanhóis.
            A história é marcada por cinco acontecimentos mágicos, envolvendo cinco personagens que se encontram ao longo da trama. Esses ocorridos vinculam-se ao fato maior (separação da península) de tal maneira que a narração do contexto histórico entrelaça-se com as história dos personagens. A jangada de pedra traz a ideia de movimento. Não é apenas a ilha que se move, os personagens também se locomovem de um lado para outro, deixando para traz os velhos compromissos, como marca de um novo recomeço.
            A jangada de pedra é um romance histórico, porque representa acontecimentos históricos por intermédio da criação ficcional. Mas não é um romance histórico tradicional, como Walter Scott ou Alexandre Herculano. O fato histórico também é fictício.
            O acontecimento estranho é tratado com normalidade pelas personagens, essa é uma característica do realismo fantástico, escola literária a qual essa obra melhor se encaixa. O realismo fantástico, ou maravilhoso, que se desenvolveu fortemente na América Latina, com autores como o colombiano Gabriel Garcia Márquez, o venezuelano Arturo Pietri e o argentino Julio Cortázar; e que tem por característica principal a existência de elementos mágicos, mas que nunca são explicados. A utilização desse estilo, próprio dos latino-americanos, pode ser interpretado como uma marca de transgressão aos estilos europeus tradicionais

PERSONAGENS PRINCIPAIS

Joana Carda: num gesto “adolescente” e despretensioso faz um risco na areia com uma vara de negrilho. Esse gesto coincide temporalmente a um acontecimento estranho em Cerbère, cidade ao sul da França, divisa com a Espanha. Os cães de Cerbère que a séculos não ladravam começam a latir. Como todos os estranhos acontecimentos que envolvem a trama, não há explicação científica para o fato de nenhum cão de Cerbère ladrar, e nenhuma explicação para a ligação de um acontecimento com o outro. Ao descobrir que Joaquim Sassa, José Anaiço e Pedro Orce estavam em Lisboa, Joana os procura e conta sua história, a partir de então segue viagem com eles no Dois Cavalos.
Joaquim Sassa: arremessa uma pedra ao mar, a distância que o objeto toma antes de afundar é desproporcionalmente maior que a força aplicada. É funcionário publico, no ocorrido estava de férias em uma praia do norte de Portugal. Ao tomar conhecimento do fenômeno de José Anaiço, parte em busca do mesmo. É dono do Dois Cavalos, carro que transporta os personagens pela viagem.
José Anaiço: após descansar na sombra de uma árvore passa a ser seguido por uma nuvem de estorninhos, que acompanha o personagem em toda a história. Pela exposição do fenômeno , é o primeiro dos protagonistas a chamar a atenção das autoridades.
Pedro Orce: o mais velho dos protagonistas, ao levantar-se de uma cadeira sente a terra tremer. Sendo o único a sentir o tremor, a princípio o dão por louco, mas com a sucessão de fatos anormais, sua história ganha credibilidade. As autoridades pedem sigilo a Pedro Orce, mas sua história vaza aos ouvidos de Joaquim Sassa e José Anaiço, que viajam ao encontro de Orce. Sente a terra tremer constantemente, até o momento em que a “jangada” para o movimento, nesse instante não sente mais o tremor e morre.
Maria Guavaira:  a última a juntar-se ao grupo. Deixemos a própria personagem contar sua história: "... não fiz mais do que desmanchar uma meia velha, dessas que serviam para guardar dinheiro, mas a meia que desmanchei daria um punhado de lã, ora o que aí está corresponde à lã de cem ovelhas, e quem diz cem diz cem mil, que explicação se encontrará para este caso,...".

Análise estrutural

·       A narração é feita em um processo múltiplo, intercalando entre a 3ª pessoa e os personagens.
·       Linguagem oral, herança dos contos populares transmitidos pela tradição oral.
·       Períodos longos.
·       Pontuação nada convencional, com a erradicação de sinais como exclamação. O ponto é pouco utilizado, sendo muitas vezes substituído por uma vírgula.
·       Discurso indireto, sendo que o tempo é predominantemente psicológico e pouco cronológico.
·       Metalinguagem, com doses de ironia.

Trecho da obra

“Quando Joana Carda riscou o chão com a vara de negrilho, todos os cães de Cerbère começaram a ladrar, lançando em pânico e terror os habitantes, pois desde os tempos mais antigos se acreditava que, ladrando ali animais caninos que sempre tinham sido mudos, estaria o mundo universal próximo de extinguir-se. Como se teria formado a arreigada superstição, ou convicção firme, que é, em muitos casos, a expressão alternativa paralela, ninguém hoje o recorda, embora, por obra e fortuna daquele conhecido jogo de ouvir o conto e repeti-lo com vírgula nova, usassem distrair as avós francesas a seus netinhos com a fábula de que, naquele mesmo lugar, comuna de Cerbère, departamento dos Pirenétis Orientais, ladrara, nas gregas e mitológicas eras, um cão de três cabeças que ao dito nome de Cerbère respondia, se o chamava o barqueiro Caronte, seu tratador. Outra coisa que igualmente não se sabe é por que mutações orgânicas teria passado o famoso e altissonante canídeo até chegar à mudez histórica e comprovada dos seus descendentes de uma cabeça só, degenerados. Porém, e este ponto de doutrina só raros o desconhecem, sobretudo se pertencem à geração veterana, o cão Cérbero, que assim em nossa portuguesa língua se escreve e deve dizer, guardava terrivelmente a entrada do inferno, para que dele não ousassem sair as almas, e então, quiçá por misericórdia final de deuses já moribundos, calaram-se os cães futuros para a toda restante eternidade, a ver se com o silêncio se apagava da memória a ínfera região. Mas, não podendo o sempre durar sempre, como explicitamente nos tem ensinado a idade moderna, bastou que nestes dias, a centenas de quilómetros de Cerbère, em um lugar de Portugal de cujo nome nos lembraremos mais tarde, bastou que a mulher chamada Joana Carda riscasse o chão com a vara de negrilho, para que todos os cães de além saíssem à rua vociferantes, eles que, repete-se, nunca tinham ladrado. Se a Joana Carda alguém vier a perguntar que ideia fora aquela sua de riscar o chão com um pau, gesto antes de adolescente lunática do que de mulher cabal, se não pensara nas consequências de um acto que parecia não ter sentido, e esses, recordai-vos, são os que maior perigo comportam, talvez ela responda, Não sei o que me aconteceu, o pau estava no chão, agarrei-o e fiz o risco, Nem lhe passou pela ideia que poderia ser uma varinha de condão, Para varinha de condão pareceu-me grande, e as varinhas de condão sempre eu ouvi dizer que são feitas de ouro e cristal, com um banho de luz e uma estrela na ponta, Sabia que a vara era de negrilho, Eu de árvores conheço pouco, disseram-me depois que negrilho é o mesmo que ulmeiro, sendo ulmeiro o mesmo que olmo, nenhum deles com poderes sobrenaturais, mesmo variando os nomes, mas, para o caso, estou que um pau de fósforo teria causado o mesmo efeito, Por que diz isso, O que tem de ser, tem de ser, e tem muita força, não se pode resistir -lhe, mil vezes o ouvi à gente mais velha, Acredita na fatalidade, Acredito no que tem de ser.”

Link da entrevista com o Profº Saulo Thimóteo

http://www.youtube.com/watch?v=vW1rxgB4f88

FONTES

ROANI, Gerson Luiz. No limiar do texto: literatura e história em José Saramago. São Paulo: Annablume, 2002.
Resenha da obra: http://www.franzecosta.com/spaw2/arquivos/textos/Resenha%2020%20-%20A%20jangada%20de%20pedra.pdf

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